quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Meu Rosário


"Meu rosário é feito de contas negras e mágicas.
Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falo
padres-nossos e ave-marias.
Do meu rosário eu ouço os longínquos batuques
do meu povo
e encontro na memória mal adormecida
as rezas dos meses de maio de minha infância.
As coroações da Senhora, em que as meninas negras,
apesar do desejo de coroar a Rainha,
tinham de se contentar em ficar ao pé do altar
lançando flores.
As contas do meu rosário fizeram calos
em minhas mãos,
pois são contas do trabalho na terra, nas fábricas,
nas casas, nas escolas, nas ruas, no mundo.
As contas do meu rosário são contas vivas.
(Alguém disse um dia que a vida é uma oração,
eu diria, porém, que há vidas-blasfemas).
Nas contas de meu rosário eu teço intumescidos
sonhos de esperanças.
Nas contas de meu rosário eu vejo rostos escondidos
por visíveis e invisíveis grades
e embalo a dor da luta perdida nas contas
de meu rosário.
Nas contas de meu rosário eu canto, eu grito, eu calo.
Do meu rosário eu sinto o borbulhar da fome
no estômago, no coração e nas cabeças vazias.
Quando debulho as contas do meu rosário,
eu falo de mim mesma um outro nome.
E sonho nas contas de meu rosário lugares, pessoas,
vidas que pouco a pouco descubro reais.
Vou e volto por entre as contas de meu rosário,
que são pedras marcando-me o corpo caminho.
E neste andar de contas-pedras,
o meu rosário se transmuta em tinta,
me guia o dedo,
me insinua a poesia.
E depois de macerar conta por conto do meu rosário,
me acho aqui eu mesma
e descubro que ainda me chamo Maria."


(EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. p. 16-17)

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