sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Entrevista com o escritor gaúcho Oscar Henrique Cardoso

Oscar Henrique Marques Cardoso, 44 anos, é natural de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Pai e avô. Reside há seis anos na cidade de Canoas, na Grande Porto Alegre. É jornalista e radialista e escreve desde criança. Como jornalista, atuo em emissoras de rádio, tevê, jornal impresso e assessoria de imprensa. Passou por redações e assessorias, sendo a de maior relevância a Fundação Cultural Palmares, em Brasília, órgão vinculado ao Ministério da Cultura que trabalha com a produção cultural e histórica afro-brasileira. Ainda na adolescência, em 1987, quando tinha 15 anos, foi o terceiro colocado no Concurso "Raízes Portuguesas na História do Rio Grande do Sul", quando produziu uma monografia sobre a cidade de Rio Grande. Concurso realizado pelo Instituto Cultural Português, em parceria e apoio com o Consulado de Portugal. Representou o Colégio Estadual Protásio Alves, de Porto Alegre, e ganhou  a premiação sendo o único aluno de uma escola da rede pública do Estado do Rio Grande do Sul a ser premiado no concurso estadual, o qual reuniu mais de 300 trabalhos. Foi uma honra e uma alegria. Ali dava os primeiros passos para o que desejava e sonhava na vida: escrever um livro. A sua produção literária começou mesmo em 2010, quando lançou "Nós", meu primeiro trabalho. De lá para cá são seis anos de vida junto as palavras. Não parei mais de escrever e lançar títulos. Um dos seus livros, o quarto projeto, a Coletânea Negras Palavras Gaúchas, foi premiado em 2014 com o Prêmio Diversidade RS, na categoria Literatura Negra. São oito títulos lançados e mais três estão prontos para lançar.


Como a literatura entrou em sua vida? 

Digo que sempre esteve presente em minha vida. Escrevo desde criança. Lanço palavras para criar, para contar histórias. Tinha cadernos e mais cadernos, onde escrevia. Histórias com finais felizes, outras, nem tanto. Digo que meu primeiro livro, "Nós", nasceu de uma dor. É uma linda história de amizade, de entrega, de doação de órgãos, uma novela social. Escrevi a partir da morte de uma grande amiga, que também era escritora. O fato de ajudar um amigo que passava por um momento difícil valeu para inspirar a construção dos personagens principais. Depois de "Nós", vieram outros trabalhos, como: Entre Louvores e Amores, Cuidado! Palavra Viva, Coletânea Negras Palavras Gaúchas, Vó Cóia, A Pérola Mais Negra, Prosopopeia e Chico. São oito títulos, oito histórias completamente diferentes, vidas, mundos, realidades. Digo que minha literatura se apoia na vida, no social, no cotidiano e na realidade. Pessoas me inspiram, vidas e situações me inspiram. A realidade negra brasileira e gaúcha me inspira, tanto que é tema de três trabalhos. Sempre os personagens negros povoam as histórias. São mocinhos, mocinhas, personagens centrais dos enredos. 
Meu último protagonista, Chico, é um lanceiro negro que vem para os dias de hoje contar a sua história ao jovem advogado Francisco. Francisco, o Chico de hoje é procurador do Estado do Rio Grande do Sul, é um jovem advogado negro, militante racial e social. A próxima história, a que vem aí, traz novamente uma mulher como protagonista. 
Uma mulher gaúcha, uma mãe, chefe de família, mulher forte, aguerrida, valente e corajosa. O tema de "Christine" a próxima trama, trata sobre AIDS. Como o HIV entra no meio de uma família, de um casamento. Além do tema AIDS a obra fala sobre os preconceitos, todos os tipos de preconceito. Digo que o livro está interessantíssimo. 


Quais os escritores que lhe inspiram?

Alguns escritores marcam a minha trajetória. Admiro Carolina Maria de Jesus. Carolina me inspira com sua força e sua resiliência em escrever, escrever em meio a tantas adversidades, escrever para viver, para desafogar o seu coração e deixar fluir o que sentia, diante as injustiças a qual sofria e sentia por ser uma mulher negra e favelada. Admiro e também sigo ao nosso poeta e ao nosso escritor maior, nosso saudoso Oliveira Silveira. Oliveira sempre amou as coisas do Rio Grande do Sul. Sempre deixou claro que o Sul também é negro. Para completar a minha pequena lista, tem também a saudosa Maria Helena Vargas da Silveira. Escritora gaúcha, falecida em Brasília em 2009, como digo, a minha mãe literária. Foi ela que me encorajava a publicar. Maria Helena escrevia sobre a vida, sobre os nossos negros, contava histórias dos negros. Foi por ela que descobri um olhar sobre a cultura e a realidade negra. Algo que ainda é distante do leitor. A nós, negros, não nos foi concedido o direito e a oportunidade de escrever. Só nos foi dada a oralidade. Ao negro era dado o analfabetismo e a exclusão do mercado cultural. O que fazíamos era visto como distante. Não éramos reconhecidos por nossa produção. O que fazíamos era "folclore". 

Quando escreve, faz pensando em algum público em específico? 

Sim, quando produzo penso em vários públicos. Minha literatura é adulta. Tenho uma obra "Prosopopeia", meu sétimo livro, que acabou agradando em cheio ao público nfantil. Como a repercussão foi muito boa, quero escrever uma história infantil. Vou escrever em parceria com uma escritora angolana. Ela vai escrever um pouco da história lá em Angola e eu começo a trama aqui no Brasil, no Rio Grande do Sul. Vamos ver o que vai dar esta trama... Voltando, digo que penso em vários públicos e várias realidades. Os temas sociais me encantam. 

No Brasil, nós poderíamos falar que existe uma cultura negra? Como é que isso surgiu e evoluiu até nossos dias? 

Existe sim uma produção cultural negra muito intensa. A maior delas é o Carnaval. Se você assistiu aos desfiles das escolas de samba em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, vê que o carnaval é uma indústria cultural negra. A base do samba nasceu dentro dos terreiros de religiosidade africana. O que nasceu nos templos foi para as ruas. Os temas são os mais diversos. Tem o samba, tem a moda, com estampas e cores. A cultura negra está na alimentação, no esporte, na moradia, no nosso modo afetivo de relacionarmos entre si. O sorriso que o brasileiro tem nos lábios é predominantemente uma herança negra. Os negros vieram trazer colorido e alegria ao nosso país. Chegamos nos porões dos navios e conquistamos a sala da casa grande. A cultura negra está sempre em ebulição. A forma mais comum é mais popular é a música. Mas está também na genialidade de Machado de Assis, de Carolina Maria de Jesus, Djalma do Alegrete, um dos maiores nomes das artes plásticas gaúchas, nome que nosso Estado não conheceu. Se tivemos o Djalma, hoje temos o José Darci Gonçalves, pintor de Arroio Grande que aos poucos vem se tornando conhecido no Rio Grande do Sul.E vamos passar por nomes mais atuais no campo das artes, como Joel Zito Araújo, Jefferson De, Nega Giza, O Rappa, Giba Giba, gente, são tantos e tantos expoentes que fica difícil falar em um aspecto único. O Brasil é a maior nação negra do mundo. E somos mais negros do que imaginamos. 

Para você existe uma Literatura Afro-brasileira? Por quê? 

Existe sim uma produção literária negra. E há genialidades e belezas. Quer que cite um exemplo. Vou falar de um escritor, de um poeta popular, um cara de periferia, o qual leio e curto muito: Sérgio Vaz. Sérgio Vaz é responsável por um projeto maravilhoso que acontece na periferia de São Paulo, a Cooperifa. É responsável por saraus e doação de livros na comunidade onde vive. Deixe falar também de outros nomes interessantes da nossa literatura negra: Cuti, Cidinha da Silva, Conceição Evaristo e quero também falar de uma gaúcha, Lilian Rocha. Lilian é, para mim, uma das maiores poetisas negras da atualidade, uma mulher a qual o Brasil deve conhecer e abraçar. Escreve versos com o coração, palavras cheias de verdade. A literatura afro-brasileira existe porque o negro toma poder sobre a caneta e escreve. Deixa fluir o que vive, o que sente e o que sonha. Tudo para nós é muito intenso, muito real. Falamos da vida real. Da beleza e da amargura, o que fazemos tem cor, odor, aroma e sabor. 

Que relação você vê entre a arte do negro ou, que recupera raízes dos negros, e a construção da identidade desse grupo?

A nossa raiz é sempre recuperada. Pois produzimos com olhos no passado. Um passado que é próximo e tão real. Não faz tantos anos que chegamos por aqui. É um passado real, marcado pela dor. Pelo que vemos, com tanta desigualdade, parece que ainda não saímos da escravidão. Saímos de um processo histórico doloroso e fomos habitar as favelas e as comunidades ao redor das nossas metrópoles. Lutamos por espaços de poder, lutamos pela sobrevivência todos os dias. Construímos e reconstruímos a nossa identidade todos os dias. Precisamos sempre nos afirmar, e fazemos isto muito bem. Veja o que é o movimento hip hop. Conquista a todos os jovens, de todas as classes sociais. Quem não é negro, canta nas letras a dor da injustiça e da exclusão. A arte transforma e revoluciona. 

O que falta para a valorização da cultura negra estender-se para a sociedade como um todo? 

Falta aplicar em nossa sociedade o que já é assegurado em lei. A Lei Federal 10.639, sancionada em 9 de janeiro de 2003 pelo presidente Lula deixa bem claro e normatiza os caminhos pelos quais a cultura e a história afro-brasileira devem ser ensinadas em sala de aula. Temos muitas leis. Creio que somos um dos países com o maior volume de leis do planeta. Mas, ao mesmo tempo, não aplicamos e desconhecemos aquilo que temos. Educação em nosso país não é prioridade. Vivemos uma falta de prioridade. A crise política é uma crise moral. Enquanto não repensarmos e reconstruirmos a nossa sociedade não veremos uma real inclusão da produção cultural negra. Falta vontade politica de nossos gestores. O Brasil perece pelo desconhecimento e por sua própria ignorância. 

Em sua opinião qual é a função política, social e ideológica da literatura infanto-juvenil afro-brasileira? 

A pergunta é longa e profunda. Achei-a ótima, mas vamos tentar resumir para não tornar a conversa enfadonha. O acesso à produção cultural e aos bens desta atividade é direito de todo o cidadão. Em meio a tentativas de diabolizar e resumir uma cultura a aspectos pecaminosos, como temos visto por aí, toda a criança tem o direito de conhecer e saber sobre tudo o que forma o seu povo. A produção cultural afro-brasileira é patrimônio de nosso povo. A ideologia que o africano traz em si é a ideologia da liberdade. Nos relacionamos com todos os elementos da Terra. Por mais que nossos colonizadores tentem nos massacrar, invisibilizar, mais fortes nos tornamos. Tenho orgulho de minha etnia, de minha origem e de minha história. Sempre que possível, quero usar de minha própria produção literária para contar sobre isto. Chega de opressão, os livros libertam e o conhecimento liberta um povo. Vivemos um cativeiro porque tememos dividir o poder. Uma criança que conhece sobre sua história, uma criança negra que se vê uma heroína, liberta um povo do cativeiro. O cativeiro de hoje é midiático, é virtual. Só o conhecimento nos liberta.


Um comentário:

  1. Belissima entrevista, Oscar Henrique Cardoso é um escritor contemporâneo intenso, aínda vai trazer muit@s escritores novos. Como ele mesmo repete "O conhecimento liberta".

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